Dia 16 - 22 dias depois e a culpa

Não tem conta as vezes que me sentei para escrever e depois fugi. Não têm conta os bocados de textos meio escritos, e os fragmentos de ideias, que talvez, ou talvez não cheguem a ver a luz do dia. Dois anos passados a coragem dada pelo Tomé começa a diluir-se e tenho que começar a andar pelos meus próprios pés, que são muito mais medrosos naturalmente do que têm sido ultimamente.

Ontem acabam as férias, por um lado uma pena, por outro ufa... acho que me sinto muito mais em casa no trabalho do que na vida. No trabalho sei (na generalidade dos casos...) o que estou a fazer e sinto que sou competente, ao contrário das férias e da vida do dia a dia.

Há muitos anos tive uma cadela chamada Pluffa, uma cocker muito bonita e um bocado lamechas, comprámo-la por ideia do Rui, quando eu estava grávida do Isac, o meu filho mais velho. Um ano e meio depois nasceu a minha filha. Fui uma péssima dona, do mais indisponivel que se possa imaginar, e ela foi uma cadela bastante infeliz.  Era impossível fazer alguma coisa com dois bébes e uma trela. 

Com quatro anos a Pluffa ficou doente e começou a vomitar, não era a primeira vez, por isso ignorei, talvez não alheio a andar exausta. No segundo dia levei-a ao médico, já era tarde. Ele disse-me que a culpa era minha, que devia ter ido mais cedo. Eu acreditei. Morreu no meu colo, enquanto as crianças dormiam. Ainda choro quando me lembro disto. Ela olhava para mim e achava que eu podia ajudar, mas não podia, tudo o que pude fazer foi ficar com ela ao colo e fazer-lhe festas e a sentir que a culpa era toda minha, e chorar sem parar quando ela morreu. 

Como não se sabia ao certo do que tinha morrido fez-se uma autópsia, descobrimos que a Pluffa tinha nascido só com um rim, que morrera por causa disso e não por causa da minha incúria. Que para o problema que tinha, tinha vivido bastante tempo. A Pluffa ainda estava morta, mas eu já não era um monstro. Passaram 22 anos. 

É tão dificil saber o que é certo ou errado, o que pode ou não ter consequências graves, tantas vezes fiz coisas arriscadas e correu bem e tantas outras não fiz nada de especial e correu mal. Quando algo de mal acontece com alguém dependente de nós, é difícil continuar a  acreditar na nossa capacidade de tomar decisões acertadas. 

Um dia, o Tomé era pequenino, enquanto lhe dava banho a água desregulou-se e ele queimou-se. Zangou-se comigo: "Queimaste-me!" 
Expliquei-lhe que não o tinha queimado, que tinha sido um acidente, perguntei-lhe se fossemos na rua e ele caísse se a culpa era minha. Ele estava zangado e respondeu-me "Era sim, porque estavas a falar com as tuas amigas... " Agora dá-me vontade de rir, mas porque era um discurso que eu sabia que não vinha dele, mas sim da minha mãe... zanguei-me e dei-lhe uma das poucas palmadas que lhe dei na vida. Estava farta demais de ser o bode expiatório de serviço. Não queria que o meu filho me visse da mesma forma. 

Há umas semanas tive um problema em casa com uma pessoa a quem aluguei um quarto durante uns meses. Um homem jovem com dificuldade na gestão das emoções, também ele, achava sempre que a culpa era minha, mesmo quando era ele que comia a minha comida ou dormia na minha cama quando eu não estava. Assumiu que eu era uma megera materialista e gélida. A culpa nunca podia ser dele. Chegou um momento em que não me sentia segura na minha própria casa. Por isso disse-lhe que saísse, quando ele mais uma
A prova do crime
vez me tratou com desprezo, atirei-lhe com  o meu luto à cara. Perdi o controle e gritei, atirei com portas. Expliquei-lhe que não tinha o direito de me tratar mal, porque o meu filho tinha morrido. Que eu merecia respeito por causa do meu  luto. Quando percebi o que tinha feito, fiquei desfeita, senti que tinha usado a morte do Tomé como uma arma de agressão, que me tinha escondido atrás do luto para me justificar. Irónicamente quando bati com a porta, um quadro com uma imagem do Tomé caiu da parede e partiu-se o vidro.... 

Colapsei, senti tanta vergonha. Descontrolei-me e chorei enquanto cortava as cenouras para o almoço - tenho uma capacidade estranha de continuar a fazer o que estou a fazer enquanto estou num caos inter. O meu filho mais velho estava comigo e senti-me uma mãe horrível por lhe ter pedido ajuda, por estar num caco à frente dele. No meio da confusão e da choradeira (onde ele se manteve firme e tranquilo pelo menos por fora) saíu-me pela boca a tal verdade "É tão difícil saber o que está certo e o que está errado, eu não sei, já não sei" Quase que me vi de fora a chorar e a dizer estas palavras, mas soube-me bem ser errada e descontrolada pelo menos um bocado, fazia-me falta. Não dá para ser conveniente o tempo todo. Às vezes é certo incomodar as pessoas, só me falta saber quando e quanto. 

Fui educada para não dar problemas, como tanta gente, para não entristecer os outros com a minha tristeza, nem os irritar com a minha raiva. Fui educada a que a culpa era sempre minha, mesmo quando apanhava uma gripe, porque devia ter ido mal agasalhada para a escola e agora ia dar trabalho. De tal forma que para pedir ao meu inquilino o respeito básico que qualquer ser humano merece, tive que me justificar com uma situação de excepção. E o engraçado é que só assim ele entendeu, saiu em meia hora e pediu-me desculpa. Funcionou, mas não valeu a pena. Senti muita culpa.

Demasiadas vezes as pessoas só acreditam na dor quando ela é tão óbvia que não pode mais ser ignorada, quando se grita, se arrancam os cabelos, quando se tem febre ou uma perna partida. Não basta dizer "doi-me", "preciso de ajuda" ou "não consigo", é preciso apresentar provas visiveis, sob o risco de ser chamado mariquinhas e mandado para o quarto. Por isso tantas vezes quando mais precisava de ajuda é quando me isolo, para não demonstrar "fraqueza", nem fazer os outros sofrer, para não ser castigada. É mais fácil quando deixo de confiar nos meus sentimentos e já não sei o que é certo ou errado, não fazer nada para não correr risco de errar. Dou por mim a fazer isso mais vezes do que gostaria.


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