Se é p'ra morrer morremos de pé.


Estava agora mesmo deitada na cama a pensar na vida e no Tomé e tive um flashback de um momento pouco antes do acidente, neste sitio.

Nesse dia senti 'não sou capaz' logo 'sou uma incapaz'. Não sei fazer isto, o meu melhor não é suficente, não sou apta para este mundo. Não posso parar, porque se parar vou ser um peso para os outros, mas não consigo continuar, estou exausta. Dei por mim a brincar com a ideia de simplesmente ir até à janela e saltar. A ideia era tão atraente que me assustei. Não é que eu quisesse morrer, eu só não conseguia ver nenhuma outra saída. 

Quando era adolescente, e me sentia particularmente infeliz, sentava-me nos muros das varandas com uma perna para cada lado. Fazia-me sentir com poder sobre a minha vida. O único poder que sentia ter. Naqueles momentos sentia-me viva e livre. 


Um dia tive uma de muitas discussões com o meu pai por um tema irrelevante, que escondia um mundo por trás. Ele ganhou. Fui para o meu quarto e fechei a porta à chave. Ele gritou-me para abrir a porta e eu disse não. O meu pai partiu o vidro da porta do meu quarto e chamou-me nomes que eu não sabia que os pais podiam chamar às filhas. Eu corri para a porta e agarrei a chave. 

Fiquei encostada à janela em choque. Ele gritava 'Dá-me essa chave &%# ou eu arrombo a porta'. A minha mãe dizia 'Dá-lhe a chave não arranjes mais problemas'. A minha cabeça estava a mil e sentia uma dor e uma revolta indescritíveis. A janela estava mesmo ali e eu sabia que podia saltar e que era fácil, que se saltasse não ia ter que pensar, nem sofrer, nem lutar mais. Mas não saltei. Senti a minha alma quebrar-se mas baixei a cabeça e abri a porta. 

Por isso, com os meus filhos, sempre tive terror de os deixar ir para o quarto zangados. Tinha uma fantasia obsessiva de que podiam estar tão zangados e desesperados que podiam saltar. Nunca lhes falei nisso. 
Também havia outra coisa estranha, quando algum deles se debruçava de uma varanda eu paralisava. E quando falo em paralisar não estou a usar uma figura de estilo. Não conseguia mesmo mexer-me e só conseguia falar baixinho 'Por favor, por favor, saiam daí.'
Eles brincavam com isso, mas ao fim e um bocado acho que até eles se assustavam.  

Lembrei-me há pouco de um sonho que tive com o Tomé há alguns anos, um pesadelo que nunca tive com nenhum outro dos meus filhos, um dos piores pesadelos de sempre. Sonhei que ele caia de uma janela e que eu corria pelas escadas para o tentar apanhar antes que chegasse ao chão, mas não chegava a tempo. Lembro-me de ter acordado em desespero e demorar a perceber que não tinha acontecido. Levantei-me e fui dormir para o pé dele para me acalmar. Precisava de sentir o calor e o cheiro dele para ter a certeza que tinha sido um sonho.


Porque é que estas coisas são assim? A dor do meu sonho foi maior do que a dor da realidade. Porque no sonho senti sem filtro e na realidade não. Os sonhos parecem-me mais reais do que a vida. 


Qual o sentido disto tudo?  Ainda não sei. Mas nem me passa pela cabeça que não haja um. Talvez não seja um sentido que me deixe feliz ou tranquila, não sei. Mas isso não me vai impedir de o procurar. 


Porque é que algumas pessoas parecem adaptar-se ao mundo e outras não conseguem?
Como é que as pessoas mais sensíveis podem viver numa sociedade que considera a sensibilidade um defeito e que está toda programada para os "mais fortes"?

Um acidente raramente é 'só' um acidente. E quando uma coisa destas acontece assim, quando um jovem passa por este processo todo e no fim morre, não compreendo que não se vire o mundo das avessas para compreender o que aconteceu e porquê. Porque se não compreendermos o porquê, uma história fica à espera de ser contada, e as histórias não contadas têm tendência a repetir-se.


Talvez possa parecer que o que faço é 'só' para manter viva a memória do Tomé, ou para me proteger da dor, e talvez também, mas não é só, é também por todos nós que ficamos e para proteger o futuro da minha família e de caminho talvez o futuro de outras. 


Talvez possa parecer que quero dar uma imagem idealizada do Tomé, mas nada está mais longe do meu desejo. O Tomé era tão humano que dói. A história dele é tão comum a tantos de nós que pode curar. 


Amar não é só um sentimento, é um verbo, uma energia de acção. Se cortamos o nosso impulso ele vira-se contra nós. Acho que por isso tantas pessoas em luto deprimem, viram toda a energia do amor que acham já não ter utilidade para dentro e secam-no e com isso secam-se. E isso ainda é o que é pedido. Como a minha mãe na sua eventual boa intenção: "Dá-lhe a chave, não arranjes mais problemas." e as pessoas matam-se por dentro para não arranjar problemas aos outros. E acabam a pensar que são elas o problema.


Será que a depressão é mesmo uma doença ou uma reacção à morte da alma que nos é imposta? Porque se é uma doença então é uma epidemia, e quando há uma epidemia qual é o agente transmissível?


Uma das últimas músicas do Valete que esteve 10 anos parado na sequência da morte do pai, diz: "se é p'ra morre morremos de pé'. Talvez não devêssemos ter tanto medo da morte, talvez seja necessário arriscar morrer para poder viver de pé. Seja essa morte real ou simbólica.  
Se calhar deprimimos porque a única possibilidade que nos é dada para sobreviver é fazê-lo de joelhos, sem causar problemas.

Fica aqui a música para quem goste;


rap consciente






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