Capicua 55

Ontem foram os meus anos: 55, uma capicua. Dizem que dá sorte. Era boa ideia... estou a precisar.
Também foi o dia em que a Joana começou as entrevistas que vão levá-la à construção do guião do documentário. Começou comigo e achei uma óptima forma de passar o meu primeiro dia dos 55.

Por isso hoje fui até Torres e sentámo-nos as duas na sala, ela foi fazendo perguntas e eu respondendo. Nunca imaginei que fosse ser tão difícil. Não é difícil falar sobre o Tomé. É difícil olhar para todo o processo que levou ao acidente dele e ver todos os momentos em que deveria ter sido diferente. É como ver o replay de um acidente de carro de cima, vemos como o carro e o camião se aproximaram, queremos avisar o condutor, vemos como o acidente poderia ser evitado se ela não tivesse olhado para baixo ou se ele não tivesse atendido o telefone, mas sabemos que não podemos alterar o desfecho.

É duro mas também necessário. Continuando com o meu exemplo desfasado, alguém estudou obsessivamente acidentes para tornar os carros e as estradas mais seguras. Talvez essa pessoa também tivesse algo a redimir.

Tem sido doloroso. Como um puzzle particularmente difícil que parece que nunca vamos conseguir acabar. Nem sequer separar as cores por zonas. As pessoas, incluindo eu, são estranhas. Fazem coisas que não funcionam e repetem-nas consecutivamente como moscas a bater no vidro. É difícil lidar com as estruturas e com a desistência antecipada e a resistência até dos que só têm a ganhar, perante a mudança.

Depois por outro lado há oásis. Pessoas que investem e seguem o seu coração discretamente e com grande coragem, como a Salomé Osório, por quem tenho cada vez mais estima e admiração. Por convite dela estou a dar os primeiros passos a sério do projecto do Tomé às escolas. A convite dela fui fazer uma sessão com uma turma, voltei para retomar com esta e fazer uma primeira sessão com outra. E tal como eu imaginava, mas tinha medo de estar errada, funciona.

Os adolescentes querem falar e falam, particularmente bem e do coração. Só precisam de uma oportunidade e de um/a professor/a que se importa e que está disposto a arriscar. E que depois ouve brincadeiras bonitas como: "A professora não é uma pessoa, é uma fada... "

Abre-se um momento mágico, patrocinado pelo Tomé... abrem-se corações, contam-se histórias. Partilham-se emoções e vulnerabilidade, é lindo e comovente.
No fim um adolescente com uma maturidade que eu adorava encontrar na maioria dos adultos diz perante as histórias dos colegas sobre solidão, bullying, lutos e também sobre pessoas que nos sabem fazer felizes : "Nunca passei por nada disso de que falaram, sei que sou um privilegiado, mas também sei que um dia vou passar, e nesse dia vai ser mais fácil para mim porque ouvi as vossas histórias." Respeito, coração e bom senso. Características da adolescência, menos faladas do que as outras.

Nos últimos anos - já são quase quatro - tenho-me debruçado sobre a adolescência, os traumas, a vulnerabilidade. Como interpretar e apoiar o comportamentos "estranhos" da adolescência, que afinal são tão fáceis de compreender quando olhados pela perspectiva certa: respostas adaptativas ao ambiente, sintomas do sistema, estratégias de sobrevivência. Como olhar para o sistema como um todo e procurar em conjunto soluções.

Fico feliz por ter aprendido tanto. Ao mesmo tempo que revejo o replay da história do Tomé sem poder mudá-la. E posso ver claramente onde se perdeu o controle. Por isso estou um pouco amarga, mas também esperançosa. Que talvez eu estivesse certa e que o Tome´tinha mesmo um plano. E de que eu consiga manter o doce no meio do amargo.

Obrigada a todos os que se mantém por perto. Pessoal ou virtualmente. São a minha tribo. Para quem ainda não viu e quer ver, deixo aqui o link para um momento que me tocou particularmente, uma entrevista na RTP África, programa Bem-Vindos com um apresentador pelo  qual tenho um enorme carinho o Sílvio Nascimento.

Bem-Vindos - RTP África com Silvio Nascimento

E torçam por nós, para que este filme encontre os seus financiadores. Já não falta tudo, mas ainda falta muito.

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