Dia 17 - A questão não é "se" mas "como"


O dificil que é responder sinceramente a "como estás?" quanto se está mal. Especialmente quando gostamos da pessoa que pergunta. Muitas vezes queremos protege-la do nosso sofrimento e respondemos sim, está tudo bem com um sorriso. E esse sorriso é feito a partir da nossa parte que está bem, porque ela também existe quando estamos mal. Só que essa resposta cria um muro entre nós e a tal pessoa de quem gostamos, um muro que existe para esconder a parte que a pode magoar.

É possivel manter um discurso perfeitamente articulado e banal enquanto por dentro se está completamente perdido. Um amigo/a pode responder com um ar animado do outro lado do telemóvel e ainda ter lágrimas nos olhos.

Fomos treinados a não incomodar, e ensinados que o sofrimento é um incómodo e uma culpa. Porque devíamos ser boas meninas e meninos e resolver sozinhos.  A maior parte das pessoas esconde quando está mal, não porque são parvas... calam-se e escondem porque são espertas e perante os maus resultados de mostrar mudam de estratégia. 

Tenho dado por mim incapaz de escrever porque o que tenho para escrever nesta fase será provavelmente zangado, perturbado e perturbador. E a escolho calar as minha angústias porque gosto das pessoa e não as quero arrastar para dentro delas. E assim crio o tal muro. E a verdade é que não sei como resolver isto. Porque não querendo mentir, também não quero angustiar. 

Uma amiga é mãe solteira, está no limite das suas forças a maioria do tempo, ainda assim, agarra-se com unhas e dentes a toda a sua energia para proteger a cria. O único apoio que tem da família e do pai da criança é material, está sem segurança económica nem afectiva. Ainda assim levanta-se todos os dias e encontra dentro de si a energia para cuidar do seu bebé, ir trabalhar, voltar à sua casa onde não há ninguém à espera, a não ser uma criança que precisa de cuidados, dia após dia, semana após semana, mês após mês.

Infelizmente uma situação comum e por isso banalizada, mas o ser comum não o torna nem um pouco mais fácil, nem um pouco mais certo. Esta mulher precisa de todo o colo possível, toda a ajuda possível, mas sabem, não é isso que encontra, o que encontra vezes demais são frases feitas que minimizam a sua situação e os seus sentimentos. "Tens que pensar positivo e as coisas vão correr melhor." "Olha para as coisas boas da tua vida." "Começa a praticar gratidão e vais ver que te sentes melhor", "Tem calma que tudo vai melhorar." Como se as beber água nos tirasse a fome.

Lindo mesmo seria ela mostrar a estas pessoas o dedo do meio... este tipo de banalidades que é tão generalizado, estas baboseiras mais ou menos bem intencionadas, não substituem um abraço sentido, nem oferecendo qualquer tipo de ajuda efectiva, apenas fazem alguém que já está vulnerável sentir-se completamente desamparada. Mais vale dizer honestamente "não tenho energia para te ajudar" ou "realmente nem sei que dizer".

Toda gente gosta de que os seus amigos e próximos estejam felizes, quando não estão sentimos-nos na obrigação de alterar isso, mesmo quando não podemos e zangamos-nos quando não conseguimos. Sentimos-nos melhor perto de pessoas felizes, mas as pessoas felizes de hoje, podem ser infelizes amanhã e vice-versa. Não há assim uma receita para estar sempre feliz, ou alegre ou mesmo confortável na vida. A vida é cheia de ciclos, uns curtos outros longos, mas inevitáveis. Umas vezes serão os outros, outras vezes nós. Culpar a pessoa que sofre pela sua infelicidade, responsabilizar alguém fragilizado por resolver sozinho os seus problemas, não me parece mais do que uma tentativa maltrapilha de nos distanciarmos do sofrimento, de fingir que não podíamos ser nós nos sapatos do outro. 

Tenho pensado nisto, e nas coisas que fazemos para nos defender, mas que ofendem profundamente o outro, e nos tornam mais fracos. 

Também tenho pensado muito na morte e na forma como a evitamos a todo o custo, por vezes com o custo de não chegarmos a viver. Penso muito na frase que mais vale morrer de pé do que viver de joelhos e tenho uma sensação dolorosa de que a maioria das pessoas hoje vive de joelhos. Que para viver de pé é essencial saber enfrentar e fazer as pazes com a morte. A mortalidade, morrer é o ultimo gesto de amor, é porque morremos, que se pode continuar a nascer.  Este ultimo gesto de amor é hoje relegado como uma fraqueza, dizemos que alguém "perdeu a luta com a doença" ou "lutou até ao fim" como se a luta com a morte fosse uma coisa boa e gloriosa, mesmo quando essa luta inclui que a pessoa passe por coisas indignas. 

Lembro-me da história da minha avó que tratou da mãe que morreu com gripe espanhola e sobreviveu, criou imunidade e depois cuidou de muitas mais pessoa na aldeia e ganhou fama de santa. Não me parece que ela fosse santa, nem me parece que não tivesse medo de morrer, acho só que ela escolheu ficar de pé e ainda assim viveu. Morreu em casa, tranquilamente. Eu teria uns 15 anos e tive a sorte de me chamarem para passar a última noite com ela. Quando morreu acordaram-me para lhe dar um beijo de despedida. Dei-lhe um beijo e a pele dela era tão suave como antes. Toda ela era tranquilidade e aceitação. Nem um pouco assustador.

A morte do meu tio Máximo foi muito diferente. Uma pessoa autónoma e dona do seu nariz, um dia foi para um lar. Não queria dar trabalho. Um dia avisaram-nos que os intestinos dele tinham deixado de funcionar e levaram-no para o hospital contra vontade dele. Fui visitá-lo. Quando cheguei não queria acreditar no que via, o meu tio, sempre tão senhor de si, estava amarrado a uma cama, porque não queria estar ali. Falei com a médica que me correu rápidamente, falei com a família para o tirarmos dali, mas ninguém achou que fosse grave. De cada vez que o visitava, via o sofrimento e a indignidade que sentia, que se sentia indefeso e assustado. Fiz-lhe festas e falei com ele, mas não tive coragem de o tirar dali contra a vontade do resto da familia. 

Apanhou uma pneumonia e morreu, mas com os intestinos a funcionar...  Lembro-me de o ver morto na cama de hospital e de sentir uma imensa tristeza, não pela sua morte, mas pelo que tinha passado nos últimos dias, precisava de morrer assim? Lembro-me de vencer o medo e de o tocar, de lhe fazer umas ultimas festinhas. Não teria sido melhor respeitar que o seu corpo já não queria mais? Quando olhei para ele e o vi pela primeira vez em muitos dias sereno, quase com um sorriso nos lábios, senti-me feliz por ele, senti que tinha fugido mesmo que amarrado, a alma dele tinha enganado os médicos e seguido o seu caminho. Ele não tinha sido vencido pela morte, mas sim sido  libertado por ela.

Quem o tinha vencido e derrotado tinha sido o sistema médico que o tratara como um corpo sem alma, que precisa ser salvo a qualquer custo, mesmo contra sua vontade e à custa da sua dignidade. Os médicos não estiveram ao serviço do paciente, mas numa cruzada anti-morte. Fui para casa muito zangada, também comigo, por não ter tido coragem de o arrancar dali, para lhe dar uma morte digna. 

Nem o sofrimento nem a morte são opcionais. A questão não é se, mas como. Mas como os vivemos é, e depende não só de nós, que quer quando estamos em sofrimento, quer quando estamos em fim de vida não somos autónomos, mas de quem está à nossa volta, e ao seu coragem ou falta dela para aceitar que nem sempre há uma solução fast-food para tudo.

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