Atravessar a linha e o livro de instruções


No liceu tive uma professora de filosofia extraordinária. Uma das frases que nos deu para reflectirmos foi "Será que é o medo da loucura que nos impede de ser quem realmente somos". Acho que é do Arno Gruen mas não tenho a certeza.

Como terapeuta, aprendi a prestar a maior atenção quando um cliente começa uma conversa com "Há uma coisa que é disparatada e nem sei se vale a pena contar." , ainda não houve uma vez em que a seguir a esta frase não tenha vindo uma informação essencial que muda tudo. As coisas que achamos disparatadas são quase sempre as autênticas, porque são teoricamente absurdas, não podem ser nem mais nem menos do que a verdade.

Porque é que isto acontece? E porque temos tanto medo de atravessar essa linha imaginária entre o que é disparatado ou não? Mesmo quando sentimos nas nossas tripas com toda a clareza.

E isto interessa-me porque me deparo tantas vezes com este exacto dilema. Deveria falar ou não sobre isto? Deveria "confessar" ou não as minha sensações? É este ou aquele pensamento ou sentimento passível de ser partilhado ou devo escondê-lo? Sei que isto não é uma coisa minha, é praticamente universal: seleccionamos o que partilhamos de forma a conseguirmos manter-nos dentro dos limites do normal. E por normal estou a falar daquilo que corresponde à percepção do mundo de um número suficiente de pessoas. 

Há dias numa apresentação do Teaser do "Tomé" contei que em criança pensava muitas vezes na falta que me fazia um livro de instruções para a vida, isto pode-se fazer, aquilo não... quando sentes isto fazes aquilo, um livro de instruções que fizesse as regras terem um sentido que para mim não tinham de todo. E houve várias pessoas a fazerem sons de "eu também".

Também profissionalmente, muitas vezes as pessoas contam algo da sua história que as inquieta e o alívio é notório quando ouvem: "isso é normal". Aquilo que aconteceu não muda, a forma como se sentem não muda, mas o facto de saberem que é "normal" acalma-as e parece mudar muita coisa, suspiram de alívio. 

Pode parecer estranho todo este medo e ansiedade à volta de ser ou não normal. Essa estranheza desfaz-se se recordarmos o passado. No passado as pessoas "anormais" foram presas, remetidas para manicómios ou até mortas. Por isso esta enorme compulsão para ficar dentro dos limites da normalidade. Sendo que muitas vezes a normalidade não é de todo uma boa coisa, nem uma boa ideia. Exemplos de coisas que foram (e infelizmente em alguns sitios ainda são) normais: a escravatura, prender e internar em asilos pessoas pelas suas preferências sexuais, o direito de vida e de morte sobre os filhos, a inquisição. A amostra é aleatória de propósito. Imagino que todos nós teríamos mais coisas a acrescentar à lista, não do passado mas do presente. 

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