Honestidade


Penso muitas vezes no que o Tomé escreveu. Ressoa exatamente em mim.

Penso cada vez mais em como manter o Tomé vivo na minha vida. Quero manter a minha ligação com ele viva para sempre. Embora adormeça e acorde a pensar nele de uma forma ou de outra, há momentos em que sinto como se me escapasse das mãos. É uma sensação agoniante, apavorante de que a vida continue sem ele. Como se ele não fizesse falta. E faz tanta. Vivemos numa época em que é tão fácil esquecer.

Tenho lido muito sobre luto e morte, tenho detestado praticamente todos os livros e gostado da maioria do que leio escrito por outras pessoas enlutadas. A teoria e a prática são diferentes. A teoria mostra-se demasiadas vezes fria e cheia de normal e patológico. A vida simplesmente é o que é. As emoções simplesmente são o que são. As pessoas são pessoas. 

Muitos dos que escrevem partilham o mais dificil é sentir que ninguém quer falar dos seus mortos. Que ninguém quer partilhar o seu luto. Como se não falar dos mortos tornasse a morte menos real. Que tontos.... 

Não falar da morte torna-nos a nós menos reais. Torna as nossas vidas menos reais.


Eu sei porque sempre tive muito medo dela, e sempre evitei falar, até mesmo pensar sobre ela.
Foi só depois de muitas mortes na minha vida e de trabalhar com muitos lutos e muitas mortes, que me rendi às evidências. Não é possivel viver sem arriscar a vida. Aprendi que não tenho tempo, é o tempo que me tem a mim. E quando sinto que não temos tempo para nada, isso só quer dizer que no fundo não estou viva. 

Estar vivo é ter tempo.

Tenho passado pela vida sem tempo: para cuidar de mim, para cuidar dos meus filhos, para cuidar dos meus velhos, e muito menos para fazer lutos. Socialmente os lutos são tratados como uma "perda de tempo" que deve acabar quanto mais cedo melhor e há que continuar em frente, mas em frente para onde? Á frente no fim só está mesmo ela outra vez, a morte. Os lutos nunca acabam e no fundo unem-nos, são uma das mais forte experiências partilhadas por todos os seres humanos.

Quanto tempo passamos a "distrair-nos", distrair-nos de quê? Se valorizamos tanto a vida, porque precisamos de nos distrair dela e fazer passar o tempo mais rápido? Distraímos-nos para não nos apercebermos de que não estamos realmente a viver? Distraímos-nos da nossa falta de prazer na vida? Distraímos-nos dos nossos lutos que não podemos viver, porque temos demasiada vergonha de os revelar?

Mentimos tanto uns aos outros, fingimos tanto, e por isso nos condenamos a uma imensa e dolorosa solidão.
Eu sei, a minha profissão mostra-me uma parte das pessoas que normalmente não está à vista. Ainda bem... sem essa autenticidade sinto-me uma boneca de trapos, uma imitadora de vida. Prefiro mil vezes a dor verdadeira dos meus clientes, que todas as alegrias forçadas e falsas de todos os dias, tantos dramas que servem apenas para disfarçar que nem sequer sabemos o que sentimos.

Enquanto escondemos o que vai no nosso interior, sobretudo nas nossas sombras, não conseguimos conectar-nos uns aos outros e acho que é para isso que aqui estamos.

Quero falar das sombras e da luz, das minhas e das do Tomé. Não quero voltar a adormecer. Quero estar com outros que também queiram estar acordados. 
Tive que renunciar a muitas coisas ao longo da vida, e essas renuncias acordaram-me temporáriamente, mas voltei a adormecer. Acidentes, relações, doenças, até agora nada tinha chegado para me manter acordada a longo prazo. 
Espero que o luto pelo Tomé consiga isso. Que por amor a ele e em memória dele me mantenha cada vez mais acordada e sem me distrair da vida. Talvez aos poucos façamos isso juntos. 
Este é o primeiro de um ciclo de textos com histórias de luz e sombra sobre o Tomé e sobre mim. Histórias sem as quais não é possivel compreender, e com as quais talvez seja...


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