O meu irmão e as minhas irmãs

Sou a da esquerda...  a que parecer um rapaz :)
Esta história tem andado na minha cabeça... Quando tinha 8 anos a minha mãe engravidou, lembro-me de muito pouco sobre a gravidez. O que me lembro bem é de que ela voltou para casa sem bebé. 

Foi muito confuso, eu achava que os bebés não morriam. Lembro-me de no dia do funeral chorar e gritar em cima da cama dos meus pais, porque queria ver o meu irmão, não queria que se fosse sem eu o ver. 

Gritei até me doer a garganta, mas fui ignorada. Era tão, tão injusto, tão irreparável, simplesmente não podiam levar o meu irmão sem eu o ver. Mas levaram, e nunca o vi. Sempre procurei por ele.

Na adolescência comportei-me como um rapaz, cabelo curto, roupa de homem, mudei pneus e viajei à boleia sózinha por muitos quilómetros.  Mais tarde, tive dois namorados, com exactamente 8 anos menos que eu. Para mim a maior coisa que podia dizer de um amigo era "somos como irmãos". Sem nunca o ter conhecido fisicamente, tem tido sempre um lugar no  meu coração. Não foi a morte dele que me traumatizou, foi nunca ter podido falar dele, nem termos sentido a falta dele juntos, nunca termos partilhado a confusão a raiva e o desespero. 

O meu irmão morreu por excesso de oxitocina no parto e hoje quase sem saber como faço parte de uma Associação que promove o parto respeitado, com o qual o meu irmão teria sobrevivido. Coincidência ou talvez não.

Só que não é assim tão simples. Se o meu irmão tivesse sobrevivido, a minha mãe não teria engravidado de seguida e a minha irmã Sónia não teria nascido. Nem a minha irmã Susana que nasceu a seguir porque o meu pai queria um rapaz. Se as minhas irmãs não tivessem nascido os meus sobrinhos e sobrinhas eventualmente também não. Tudo, mas tudo seria diferente. 

Podemos ou devemos querer voltar atrás? Não sei. Seria mais feliz com um irmão do que com duas irmãs? É quase uma pergunta parva... nunca sabemos como seria o que não foi. Sabemos apenas que seria outra coisa. Por isso um luto é mesmo literalmente uma possibilidade de criar nova vida, neste caso duas. 

As minhas irmãs salvaram-me a alma. Com elas aprendi o que era ser amada como só um bebé sabe amar. Apaixonei-me completamente de volta. As coisas não eram fáceis em minha casa. Os adultos eram incompreensíveis, era melhor sair do caminho. Os meus pais trabalhavam muitas horas, eu ficava em casa com a empregada que mudava frequentemente, as horas não arrastavam-se, é o castigo que se dá a quem faz um crime ficar fechado, eu era uma criança e não tinha feito crime nenhum. 

Quando as minhas irmãs nasceram eu tinha dez anos, mas do bom senso que as crianças têm, sabia que aquilo que acontecia em casa não era bom. Compreendia que o que os meus pais faziam não podia estar certo, sentia-me partida por dentro. Quando elas nasceram, tomei uma decisão: "eu já estou estragada, mas não vou deixar que as estraguem a elas". O nascimento das minhas irmãs fez o mesmo de outra forma: mostrou-me uma forma com eu conseguia ser feliz apesar de "partida", fazendo os outros felizes. Aos dez anos eu já não conseguia ser feliz por mim, mas conseguia ser feliz por empatia.

Pode parecer que esta é uma história rara, mas não é de todo. Acredito que há pessoas que vão saber muito bem de que estou a falar... Aprendemos tantas vezes a ser felizes por procuração. A ser o espelho da felicidade dos outros... 

O que é que isto tem a ver com o Tomé? Tudo. Ensinou-me que a morte não impede um laço de amor. O meu irmão tem estado presente toda a minha vida, cada vez que penso nele, está aqui. Nesta fase a energia dele e do Tomé sinto-as muito semelhantes. 
Também me ensinou que não posso querer mudar o passado sem renegar o presente. Que os caminhos da vida e da morte são mais complexos do que as aparências. E que um fim é também um inicio. Que não há forma de saber o que seria melhor ou pior, só há forma de saber o que é...

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