Há tantos Tomés por aí


Nos últimos tempos, há outros níveis de dor e de aceitação que se tornam disponíveis, as camadas de cima estão digeridas e as mais profundas podem emergir. O objetivo já não é atravessar respirando o dia de hoje, mas encontrar forma de viver os próximos anos, décadas sem cair na tentação de esquecer e voltar a adormecer. É como se passasse de uma corrida de 100 metros para uma maratona.

Hoje vieram-me à cabeça histórias do Tomé. Lembrei-me de como ele era confiante e feliz, pacífico, generoso. Da vez em que, na segunda classe, no Alentejo, fugiu da escola pelo meio do campo com os amigos "estrangeiros", porque os miúdos locais os tinham ameaçado com pedras e me pregou um susto enorme. E à noite, quando lhe perguntei bem abraçadinha a ele, se não tinha pensado em mim quando tinha estado fugido, olhou para mim na maior inocência e respondeu: "pensei sim, pensei: isto é tão bonito, tenho que vir cá com a minha mãe." E isto era o Tomé.

E chorei do fundo do coração pelo que o vi ir perdendo de confiança ao longo do tempo, não porque tinha que ser, não acredito de todo nisso, mas porque se foi cruzando com pessoas e mais pessoas assustadas e magoadas, que foram injustas, mesquinhas, arrogantes e tiveram medo dele e da sua forma pura e ao mesmo tempo selvagem de ser, do amor que havia nele. Porque como todas as crianças o coração aberto dele se cruzou com tantos corações fechados. E ele não compreendia.
Chorei do fundo do coração porque também eu o quis normalizar e quis que ele me ouvisse quando era eu quem precisava de o ouvir. 
Lembrei-me de quando foi ao Sudoeste e não chegou na camioneta em que era suposto, da angústia quando não o vi, e do alívio quando telefonou de casa, tinha chegado mais cedo. E sei que não vou ter mais esse alívio. Aconteceu mesmo. Lembro-me do medo que tinha de não o conseguir proteger. Lembro-me de compreender que não o sabia proteger. Do momento em que me apercebi que ele já estava formado e em que desejei que tivesse conseguido dar-lhe o suficiente, porque sabia que agora estava fora das minhas mãos, e que este mundo ainda não está preparado para Tomés. Lembrei-me do que uma pessoa amiga e honesta me disse: "ensinaste-o a abrir o coração, mas não o ensinaste a proteger-se" e sei que foi verdade.
Há pouco tempo outra amiga dizia-me, falas como se o Tomé se tivesse suicidado. Na verdade não falo, falo como se a alma do Tomé tivesse feito uma escolha, eu não acredito em acidentes. E não tenho palavras para o quanto lamento que esta tenha sido a melhor escolha, por muito que a respeite.
Não tenho palavras para o que me dói que ainda não haja forma para uma criança chegar a adulto com a alma intacta. Que ainda não haja forma de pessoas como o Tomé não serem terrivelmente devastadas pela vida. Está na altura para mim de atravessar todas estas sombras, deixar-me mergulhar na noite escura da alma. Da minha alma que também foi devastada tantas vezes, e acreditar que vou reemergir do outro lado de alguma forma mais sábia, mais lúcida.
O Tomé morreu, mas há por aí tantos Tomés a morrer aos poucos, a perder a alma devagarinho. Ele não é um caso isolado. E já chega de massacre da alma. Eu preciso encontrar uma forma de participar na recuperação da magia, da bondade, do coração aberto, da alma selvagem.

"Pára, pensa e interioriza, a sociedade onde vives só se deteriora, honestidade e bondade é o que ela mais precisa..." Tomé

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