Querido





Querido


Gosto da ideia que as almas  mais próximas se vão reencontrando através do tempo na terra para se ajudarem a evoluir. Não sei se é verdade mas gosto. Gosto da ideia que a tua morte tem um sentido, embora não compreenda qual, espero nunca parar de o procurar até o encontrar.

Ultimamente muitas vezes não sei o que sinto nem o que penso....  Fica uma grande nuvem na minha cabeça e no meu coração, nos ainda momento mais intensos, tenho muitas dúvidas sobre quem sou, o que valho e se a vida ao fim e ao cabo tem algum sentido. Sei que já não sou quem eu achava que era, e não sei se gosto ou não de quem sou agora.

Era muito pequenina quando me perguntei pela primeira vez se a vida valia a pena.
"Quando morremos acaba tudo, tudo o que acontece na vida é inútil. Tudo o que eu faça não tem a mínima importância, porque um dia vai desaparecer para sempre e ninguém se vai lembrar."
Fiquei em pânico durante muito tempo. Na altura já sabia que era uma pergunta perigosa para se fazer a um adulto.

Não me lembro qual foi a pergunta que fizeste, mas lembro-me de te ter explicado como via Deus ou o Universo. Disse-te que era como uma grande bola de plasticina e que nós éramos pequenas partes dessa bola, que saíamos dela quando nascíamos e voltávamos para ela quando morríamos e da grande bola continuavam a sair novas pessoas sempre diferentes. Que era como se todos saíssemos da barriga de Deus e no fim voltássemos para lá. Disse-te que não tinha a certeza, mas que gostava de pensar assim. Estava muito séria e tu respondeste-me.. "Da barriga? que nojo!"

Queria poupar-te à angústia sobre a morte mas claro que não consegui.
Tinhas imenso medo que alguém morresse, até do Migalha me disseste que achavas que não ias aguentar. Nunca falámos sobre se tinhas medo de morrer. Não que me lembre. E no fim, já viste, não passaste pele morte de ninguém que amasses durante a tua vida. É uma coisa rara.

Ouço e leio outras pessoas falarem sobre a morte de filhos e é raríssimo identificar-me. Nunca julguei que te vi na rua, nunca pensei ouvir a tua voz, nunca me esqueci que tinhas morrido. Não sei porquê. É assim. Não te imagino como eras, imagino-te diferente mas de uma forma que não conheço exactamente.

Quem me dera saber o que gostarias que fizesse. Se tudo o que faço por ti, sem ti tem algum significado para ti, ou se é irrelevante. Indiferente. Será que já estás na barriga de Deus e te esqueceste de nós?

Passou quase um ano que morreste, faltam dias, fizeram 19 anos que nasceste na semana passada.
Comecei este ano cheia de certezas, acabo-o cheia de cheia de dúvidas.
Comecei cheia de amor e acabo-o com o coração dorido.  A tua morte não mudou o mundo como eu imaginei, não mudou o meu mundo tanto quanto eu sonhei... não abriu todos os corações, não nos fez ligarmos-nos mais autênticamente, pelo menos ainda.

Tal como tu vejo os meus defeitos e os dos outros e às vezes deixo de sentir para deixar de sofrer mas se o fizer também deixo de poder amar.
Ás vezes sinto que não vale a pena ser tão teimosa, que o que faço não tem sentido, que tenho demasiados defeitos e só tenho vontade de me esconder.
Há momentos em que me sinto completamente deprimida e desiludida. Em que me sinto tão cansada que só quero dormir e esquecer-me de mim, de ti, do mundo. Mas também sei que isso não dura.

No fim de tudo encontro um pensamento que me reconforta, no fim da viagem inevitavelmente vou morrer, não há pressa, não vale a pena ter medo, vale a pena correr riscos.

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