Para além do adeus

Aconteceu muita coisa, tanta que não tenho conseguido tempo interior para escrever aqui.
Em alguns momentos parece que o Tomé é fruto da minha imaginação, que nunca existiu. Noutros está tão presente como se estivesse fisicamente ao meu lado.

Na semana passada fui pela primeira vez a um grupo de encontro para pais a quem morreram filhos. Tinha medo e mais uma vez percebi que estava certa. Encontrei um grupo de pais muito heterogéneo, lutos de muitos anos, um deles de 20 anos.
Precisava ver como estavam outros pais, mas acima de tudo, tentar encontrar alguém com quem me identificasse, que me compreendesse. Porque como tudo um luto é um luto, mas pode ser vivido de formas radicalmente diferentes.

Foi difícil falar ali do Tomé. Contei brevemente a história e disse que estava espantada por não me sentir pior. Que tinha imaginado pior. Senti-me envergonhada, alguém com um privilégio que vem esfregá-lo na cara de quem não o tem. E tenho privilégio pois. Tenho o privilégio de ter mais dois filhos que amo e me amam, e com quem pude estar praticamente 24 horas por dia, durante um mês inteiro a integrar tudo o que aconteceu, de sentir o Tomé próximo, de ter uma experiência de vida que me ajuda e amigos que sabem na maioria dos casos como me ajudar. Tive o privilégio de ter uma Teresa Ribeiro ao meu lado logo no primeiro dia, alguém que sabia de sabedoria o que fazer, alguém que ajudou o meu filho mais velho a integrar o trauma assim que ele se manifestou. Como a Odille Beauvillain que amparou a minha família com uma experiência de muitos anos em casos semelhantes. Quem me dera que todos pudessem ter isto. Todos deviam ter pelo menos uma parte disto.

E aconteceu o que eu temia, lá do fundo uma senhora de uma certa idade, com um ar composto, a certa altura diz: 'Queria dizer à senhora lá do fundo para ter cuidado, eu tenho uma amiga que também seguiu em frente, não quis fazer o luto do filho, afogou-se no trabalho e na bebida e ao fim de 20 anos teve que procurar ajuda." Respirei fundo várias vezes e acabei por responder que não me parecia que fosse esse o meu caso, que eu choro muito, que sofro, que me martirizo também, que se quisesse fugir do luto não estaria ali, que falava todos os dias do meu filho. Que se eu estivesse mais vulnerável o que ela tinha dito me podia ter feito muito mal. Me podia fazer sair dali à espera do momento em que ficaria alcoólica e deprimida. Soube-me bem. Podia ter-me calado mas escolhi não o fazer.

Há dias num encontro sobre o parto, um senhor formidável chamado Mark Harris, dizia entre outras coisas que tudo o que dizemos é um sugestão hipnótica. Sabem aquele momento em que alguém olha para vocês com um ar preocupado e vos pergunta se se sentem bem? O que é que acontece a seguir? Se forem como eu, sentem logo um calafrio e começa a vir uma ligeira tontura... :)
O valor das palavras é tão grande. No principio era o verbo... E aquela senhora tão diferente de mim, que se sentiu atacada pelas minhas palavras, que se assustou com a diferença entre os nossos lutos, como se para um ser certo o outro tivesse que estar errado, reagiu como era de esperar, como é compreensível. Felizmente eu tinha esperado o tempo suficiente. Se fosse há meio ano atrás, acho que haveriam cabelos a voar pelos ares... e senhora composta, descomposta. Eu teria ficado também tão assustada que teria revidado  na mesma moeda, ou pior. Ainda bem que não foi assim.

A senhora ficou confusa e disse-me que só estava a tentar ajudar, eu respondi-lhe que por isso mesmo queria ser honesta com ele e dizer-lhe que não estava a ajudar. Ficou baralhada. Eu respirei. No fim ofereceu-me boleia. Espero não a ter magoado, mas este é um momento em que não me quero dar ao luxo de engolir sapos. O meu estômago não está para essas coisas, dói muito.

Fim de inverno e sinto-me super cansada, há muitas coisas que ainda não encaixaram. Faz muita confusão quando me "esqueço" do Tomé, a seguir a ressaca é enorme. E ao mesmo tempo sei que muita coisa está a acontecer por baixo da superfície, muitas ligações a mudar no meu cérebro, muitas coisas a integrar-se na minha alma. Muitas vezes é mesmo difícil gostar, ou até simplesmente suportar o mundo e as pessoas no geral. Tudo o que é máscara, falso, defesa me cansa de uma forma terrível. E assim como que por acaso quando chego a casa encontro este texto com que me identifico tanto. Foi uma espécie de presente. Podiam literalmente ser as minhas palavras.

"O momento em que ouvi a notícia da morte de Guy ficará gravado na minha memória para sempre, mas o choque tem uma maneira de entorpecer emoções (talvez seja a única maneira de sobreviver) e tudo que me lembro dos meus pensamentos naquele momento é que eu sabia, literalmente, dentro de minutos, que tínhamos que fazer algo para manter o nome de Guy vivo. Eu não tinha absolutamente nenhuma idéia do que que algo seria ou como nós o fariamos, mas eu sabia que tinha que salvar alguma coisa a partir desta catástrofe. Agora que ele já não podia conseguir alguma coisa na sua vida, eu senti que tinha que fazer isso por ele , para encontrar sentido em sua morte e , de alguma forma realizar seu potencial perdido. - podem ler mais em Beyond Goodbye

Respirei fundo, há mais pais a sentirem o mesmo que eu! Eureka :)
Há muita coisa para além do adeus, há laços eternos....



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