As vozes na minha cabeça


Hoje sonhei mais uma vez com o Tomé, no sonho estava a pensar: "Se nos re-encontrarmos depois de eu morrer, como nos vamos reconhecer? Será que não estaremos os dois muito diferentes? Será que ele tem o mesmo aspeto? E ele será que me reconhece a mim se tiver passado muito tempo? E se nos procuramos e não nos encontramos?" E acordei assim com o coração nas mãos.

E tenho andado a adiar escrever porque tudo o que eu escreva a partir daqui é provavelmente estranho. Ou mais estranho ainda. Até aqui tinha-me colocado numa posição confortável de não precisar de certezas em relação a muitas coisas, como se há consciência ou não depois da morte, se as memórias de vidas passadas são reais e de onde vem a informação que surge nas constelações familiares. Limitei-me a seguir a regra de que se funciona está certo.

Uma coisa de que tenho a certeza é de que há magia, sendo a magia algo que acontece sem explicação lógica possível. Já a vi acontecer vezes sem conta e não há forma como a possa negar. Só não sei como funciona nem de onde vem. Limito-me a vê-la acontecer, e trabalho com ela, tal como trabalho com o computador: não preciso de compreender o mecanismo da coisa para o usar.
Só que desta vez é diferente, desta vez gostava de provas mais evidentes e é difícil aceitar que vou ter que confiar "só" no coração.

Nos dias a seguir à morte fisica do Tomé, senti-o muito perto, aliás não fui só eu. A certa altura e com várias pessoas olhámos umas para as outras e alguém perguntou: "Sentem isto?" e todos acenámos com a cabeça, todos sabíamos do que se estava a falar. Uma paz como nunca tínhamos sentido. No cemitério nenhum de nós queria ir-se embora. Mais tarde a Bianca disse que talvez nunca se tenha sentido tão bem. Porquê? Mecanismos de protecção do cérebro? Pode ser. Pode não ser.

Creio que na própria manhã, ouvi na minha cabeça "Agora tudo vai melhorar", não fazia sentido. Quando entrei no meu quarto e pensei para mim "E agora? Como vou lidar com a solidão?" e algo na minha cabeça respondeu "Nunca mais vais estar sózinha".

Todos os dias pensei, amanhã é que vai ser horrivel e depois nunca era, daí a uns dias no carro perguntei para mim própria "É só isto? é possível que seja só isto? Que não vá ficar pior?" e na minha cabeça ouvi "Não vai ficar pior. É a minha prenda para ti." E de certa forma não ficou. Quando entrei pela primeira vez no quarto do Tomé, quis fugir, e outra vez na minha cabeça a voz: "Por favor não tenhas medo de mim, não fujas" e fiquei e foi importante. Quando finalmente o corpo foi liberado da autópsia e entrámos todos para o ver pela primeira vez: "Venham todos de mãos dadas, e toca-me não tenhas medo do meu corpo, ajuda-os a tocar-me, não tenham medo" e tudo estava certo.

No velório senti que tinha mesmo que fazer com que fosse alegre e sobretudo que tinha que ajudar todos os amigos a tocar-lhe. Era como se só isso importasse, sei que ignorei os meus próprios amigos, a minha preocupação estava toda com os amigos dele. Sabia que cada um tinha que lhe tocar para não ficar mal depois. A certa altura olhei e vi uma coisa linda, três ou quatro amigos à volta do caixão (que palavra feia), a rir e a fazer-lhe festas. Muito amor.

O único momento em que perdi o centro foi quando vi o carro funerário, outra vez uma palavra manhosa e uma coisa tão feia. Acho que ele preveria ir numa Volkswagen com flores e simbolo da paz e não num carro deprimente e formal, feito para por as pessoas ainda mais tristes. Porquê? Porque é que os rituais de despedida alimentam o sofrimento como se quisessem por o dedo na ferida? Porque é que fingimos que estas coisas são injustas ou estranhas quando fazem parte da vida? Ouço tantas histórias de família e em quase todas há histórias assim. Não é algo que me aconteceu só a mim, famílias em todo o lado têm passado pelo mesmo desde o principio dos tempos. Neste mesmo momento no mundo muitas outras mães estão "comigo", provavelmente ainda a perguntar-se como eu "Será que ainda precisa de mim? O que posso fazer para o proteger onde quer que esteja? Como posso não lhe pesar, dar-lhe leveza e amor?" e também claro a lidar com as sombras: "Foi por minha causa? Falhei a protegê-lo. Porque não consegui evitar? Tinha mesmo que ser assim?" As dúvidas que doem tanto mas ás quais não dá para fugir.

Tenho guardado esta foto como um bem precioso, tinha-a partilhado na noite anterior e depois retirei-a, quis tê-la só para mim por um tempo. Agora quero partilhá-la. Não consigo deixar de sentir que há aqui algo de especial. Como se nós soubéssemos, como se também isto tivesse sido um presente do Tomé para mim, para eu ter a certeza que independentemente do ano difícil que tivemos, estávamos em paz. Provavelmente é a minha cabeça, ou talvez não.

Isto foi uma mensagem que enviei no face ao Tomé, li e achei que tinha tudo  ver, mantenho o que disse. :)
""While I helped give you life and helped shape your life, whatever you choose to do with your life is up to you. Please know that I will love you as always, no matter what differences in our ways there may be, as I hope you will always love me."





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