Dia 14 - Ser ou não ser feliz


O puzzle que o Tomé e eu fizemos juntos na casa do Areeiro

Eu e o Tomé fizemos um puzzle imenso há uns anos, durante semanas não pudemos comer na mesa da sala, mas valeu totalmente a pena. No fim faltavam peças, decidimos emoldurar mesmo assim, adorei fazer o puzzle com ele, adoro este puzzle com peças em falta, mais tarde encontrei as peças, mas não quis colocá-las no lugar, achava tão mais bonita a imagem incompleta. Está agora na parede do quarto que foi do Tomé. Estão quase a passar dois anos, parece um segundo e uma eternidade. As saudades não diminuem, aumentam. Algumas peças encaixam no puzzle, outras não faço ideia onde ou se vão encaixar alguma vez. 

Ontem estive com a Doriana, a mãe do Brian que morreu exatamente hà um mês - hoje foi o lançamento de balões em sua honra - foram precisos dois anos para me encontrar cara a cara com alguém que tem uma forma de viver o luto semelhante à minha. Que escolhe lembrar e continuar em relação. Que também tem sentido que falta abertura para isto. Foi muito bom. Até nos esquecemos de tirar fotografia, é bom sinal. Se a partir de três já não é loucura, já só nos falta um/a... 


Sei que posso continuar a sentir felicidade apesar da morte do Tomé, e paz, e alegria. A questão não é se é possível, é se vou ter coragem de o fazer apesar do medo.
Medo de quê? Medo de que uma mãe que consegue ser feliz e sentir-se viva depois da morte de um filho não seja boa mãe e consequentemente é óbvio que não pode ser boa pessoa. Tenho medo de não ser boa pessoa se for feliz. Conhecem a sensação? 

Podemos sentir isso por causa da morte de um filho, por causa da infelicidade dos nossos pais, da nossa família inteira ou parcial... dos nossos vizinhos. Em ultima análise pode parecer uma traição aos nossos amigos e até à humanidade ser feliz em tempos de tanta dor. Há anos um professor de constelações de que gosto imenso o Lorenz Wiest dizia-nos: "Achas que é difícil ser infeliz? Pensa melhor, ser infeliz é muito fácil, qualquer pessoa consegue ser infeliz, difícil é ser feliz, é isso que dá trabalho." Fez-me sentido.

Já li escrito por especialistas em luto que quanto maior o amor maior a dor... $%&#$%& A sério? Com essa lógica as pessoas que não ficam destroçadas são insensíveis e no fundo não gostavam das pessoas que morreram. O luto não é um concurso... 

Essa forma de pensar deixa quem sobrevive com vergonha de se sentir bem, porque isso parece ser uma prova de desamor. Por outro lado é-nos pedido para ficar bem rápidamente... embora claro se continue a afirmar que ficar bem é impossível. É fácil concluir que o que é socialmente aceite é ser estóico, continuar a funcionar e sofrer em silêncio. Nada mais poético do que uma pessoa que corajosamente apesar da dor leva a sua vida 'para a frente'. Sobreviver e sofrer em silêncio é permitido. Sofrer abertamente e ao mesmo tempo continuar vivo, nem tanto. 

Medo e coragem: medo de não me permitir ser feliz, medo de não ser boa mãe nem boa pessoa, vergonha de querer viver, e a coragem que nasce desse medo, de me questionar, de procurar, de perguntar e sobretudo de respirar e escutar os meus sentimentos, de partilhar a história de expor aquilo que envergonha para lhe tirar o poder.

Há algo de indomável nos sentimentos fortes, que assusta quem tem medo do seu lado bicho. Há uma loucura boa em seguir esses sentimentos, desconfio que eles podem levar-nos mais perto de uma verdade orgânica que cura. 

Apesar de o Tomé ter morrido eu continuo viva e o campo continua a cheirar bem e os risos das criança ali ao lado continuam a ser alegres. E no fundo o desafio desta blogue é esse mesmo, aprender a ser feliz com o Tomé, um processo intrincado :) mas vamos... 

Obrigada à Doriana por ser uma companheira de jornada.

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